DIRETRIZES BRASILEIRAS PARA TRATAMENTO DA FIBRILAÇÃO ATRIAL
HISTÓRIA, DEFINIÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS
História
A primeira referência à Fibrilação Atrial (FA) vem de citações de um médico imperador chinês, chamado Huang Ti Nei Ching Su Wen que viveu no período de 1696 a 1598 a.C. em sua obra “The Yellow Emperor´s Classic of Internal Medicine”.1 Entretanto, cientificamente a FA começou a ser conhecida no século XV quando recebeu várias denominações, todas elas referindo-se ao ritmo irregular e acelerado observado na arritmia (delirium cordis, pulsus irregularis perpetuus, “palpitações revoltosas”, etc).2 Os conhecimentos sobre FA se iniciaram com o estudo dos pulsos periféricos e, posteriormente, com o auxílio e correlação com a ausculta cardíaca.3,4 Por muito tempo, a denominação pulsus irregularis perpetuus foi utilizada por se considerar patológicas apenas situações sustentadas, desconhecendo o paroxismo das crises de FA.
Com o advento do registro do pulso venoso, Vulpian em 1847 foi o primeiro a dar o nome de mouvement fibrillaire ao visualizar o átrio de um cão em FA.5 Entretanto foi James MacKenzie, em 1894, que mostrou, por meio do registro do pulso venoso, em pacientes com estenose mitral, que quando havia irregularidade do pulso não existia nenhum sinal de atividade atrial. Tal observação permitiu concluir que os átrios não apresentavam contração durante a FA, criando então uma nova terminologia: auricular paralysis.6 Foi no início do século XX que Einthoven, após toda evolução no conhecimento da FA, com a utilização do registro do pulso venoso, começou a tirar suas primeiras conclusões utilizando o registro da atividade elétrica cardíaca: o eletrocardiograma. No ano de 1906, ele publicou o primeiro traçado eletrocardiográfico de FA. Foi descrito um caso de pulsus inaequalis et irregularis mostrando que os complexos QRS estavam normais, porém ocorrendo irregularmente e com uma “interferência elétrica” que não permitia a identificação da atividade elétrica atrial.7 Nessa data, o traçado eletrocardiográfico registrava fielmente a FA, porém não se entendia ainda o que ocorria com a atividade elétrica nos átrios durante o episódio arrítmico.
Foi Hering, em 1903, que interpretou a “interferência elétrica”, descrita por Einthoven, como atividade elétrica atrial, nomeando-a de ondas f.8 Um ano mais tarde, Lewis correlacionava todos os achados eletrocardiográficos do ritmo regular e irregular com as alterações hemodinâmicas e contráteis atriais presentes no ritmo sinusal e na FA, respectivamente.9
Definição e Aspectos Eletrocardiográficos
A FA é uma arritmia supraventricular em que ocorre uma completa desorganização na atividade elétrica atrial, fazendo com que os átrios percam sua capacidade de contração, não gerando sístole atrial. Essa desorganização elétrica é tamanha que inibe o nó sinusal enquanto a FA persistir. Ao eletrocardiograma, a ausência de despolarização atrial organizada reflete-se com a substituição das ondas P, características do ritmo sinusal, por um tremor de alta freqüência da linha de base do eletrocardiograma que varia em sua forma e amplitude. Esta alteração é associada a uma freqüência ventricular rápida e irregular que só ocorre na presença de nó atrioventricular íntegro10 e sem ação de fármacos que comprometam sua capacidade de condução.10,11 Normalmente, durante o episódio de FA, o nó atrioventricular é bombardeado por uma grande quantidade de estímulos elétricos que tentam passar aos ventrículos. Como uma característica elétrica importante do nó atrioventricular é proteger os ventrículos de freqüências atriais muito elevadas, apenas uma determinada quantidade de estímulos elétricos, que normalmente não são capazes de comprometer importantemente a função ventricular, atingirão os ventrículos. Esse controle da freqüência cardíaca ventricular se faz de forma irregular, pois, durante a FA, não há um ciclo que determine a chegada regular de estímulos ao nó atrioventricular. É a irregularidade da passagem dos estímulos, através do nódulo atrioventricular, que imprime ao ECG a irregularidade peculiar do ciclo de RR na FA. A presença do “tremor” da linha de base com ausência de ondas P e ciclo RR regular significa que o paciente apresenta bloqueio atrioventricular total (isolando a FA aos átrios, com os ventrículos sendo comandados pela junção atrioventricular) ou apresenta taquicardia juncional (o foco de comando da taquicardia não permite a passagem dos estímulos provenientes da FA aos átrios).
A FA não raramente pode estar associada a outras arritmias como o flutter atrial e a taquicardia atrial. Essa associação ocorre devido a uma relação de causa e efeito entre si ou porque os átrios são doentes e facilitam a ocorrência de tais arritmias, sem interdependência entre elas. Por exemplo, um paciente com FA que faz uso de fármacos antiarrítmicos para prevenir recorrências pode, pela ação do fármaco ter a FA organizada em flutter atrial típico. Em outras circunstâncias, arritmias como o flutter atrial ou taquicardia atrial, podem se degenerar em FA.
O flutter atrial típico se caracteriza por serrilhado constante da linha de base tipo “dente de serrote”, sem intervalo isoelétrico. Na presença de nó atrioventricular íntegro e livre da ação de fármacos, normalmente apresentará condução atrioventricular 2:1, onde os átrios apresentam freqüência de 240 a 320 bpm e os ventrículos metade disso (120 a 160 bpm). Ao ECG, o flutter atrial típico normalmente se manifesta com ondas f negativas nas derivações DII, DIII e aVF, e positiva em V1 e, mais raramente, quando assume sentido inverso, ondas f positivas em DII, DIII e aVF e negativa em V1. Nas taquicardias atriais, normalmente observa-se a presença de linhas isoelétricas entre uma ativação atrial e outra, estando sua morfologia vinculada ao sítio de origem da taquicardia.
Classificação
Várias classificações e nomenclaturas já foram propostas para a FA.12-15 Hoje, com o conhecimento dos fatores causadores e mantenedores da FA e das diversas doenças que podem ou não estar presentes, sabe-se que, por trás de um simples e fácil diagnóstico eletrocardiográfico de FA, existem peculiaridades que interferem diretamente na conduta a ser tomada. Isto faz com que ela seja praticamente individualizada a cada paciente. Entretanto, três tópicos nunca podem deixar de ser lembrados frente a um paciente com FA: prevenção de tromboembolismo, controle da freqüência cardíaca e prevenção de recorrências. Desta forma, ao se estabelecer uma classificação para FA, ela deve apresentar relevância clínica importante e ser de fácil entendimento e utilização na prática clínica.
A atual classificação proposta para a FA é: inicial, paroxística, persistente e permanente16(Figura 1). A inicial ou novo diagnóstico refere-se à primeira vez em que é feito o diagnóstico ou ao diagnóstico de novos episódios. A paroxística é aquela que termina espontaneamente, sem ação de fármacos ou necessidade de cardioversão (CV) elétrica. Geralmente são episódios que duram menos de 7 dias, freqüentemente menos que 24 horas, podendo ou não apresentar recorrências. A persistente é aquela que se instala e não se interrompe, a menos que seja realizada cardioversão elétrica ou com fármacos. Normalmente são episódios que duram mais de 7 dias e também podem ou não recorrer. Incluída nesta categoria é a FA com duração superior a 1 ano, chamada de FA persistente de longa duração.17 Já a permanente é aquela FA onde as tentativas de reversão falharam ou na qual se fez a opção por não tentar a reversão da arritmia. Entretanto, apesar das três formas de FA serem distintas entre si, é possível que um paciente migre de uma forma para outra. Cumpre ressaltar, todavia, que o termo FA permanente tem sido considerado inadequado no contexto de pacientes submetidos à ablação por cateter ou cirúrgica da FA, pois essa denominação geralmente se refere a pacientes nos quais se decidiu por não buscar a restauração do ritmo sinusal por quaisquer meios.17
Figura 1 - Classificação da Fibrilação Atrial.